A travessia de um carro de bois através de uma estrada
sertaneja confecciona o cenário do conto “Conversa de Bois”, oitava narrativa de "Sagarana", publicada por Guimarãoes Rosa em 1946. O carro, puxado por oito bois, é conduzido
por Tiãozinho, o menino guia que, muito triste, vai à frente da boiada.
Só Tiãozinho era
quem ia triste. Puxando a vanguarda, fungando o fio duplo que lhe escorria das
narinas, e dando a direção e tenteando os bois. (ROSA, 1946, p.214).
Os oito animais são dotados de uma inteligência estranha
ao ser humano e tecem com ela uma visão do existir que se opõe ao pensamento
dos homens. Este, em todo seu pragmatismo, em toda sua ânsia de saber, de pôr a
nu o essencial das coisas, não se coaduna, de modo algum, à sabedoria
instintiva dos bichos.
— Podemos pensar como o
homem e como os bois. Mas é melhor não pensar como o homem...
— Pior, pior...
Começamos a olhar o medo.., o medo grande.., e a pressa... O medo é uma pressa
que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho... E ruim ser boi-de-carro. E
ruim viver perto dos homens... As coisas ruins são do homem: tristeza, fome,
calor— tudo, pensado, é pior... (ROSA, 1946, p.217).
Aqui se delineia um conflito que alude a conteúdos
intrapsíquicos: De um lado, a consciência, representada pelo lógico, o
socrático, o científico; de outro, o inconsciente, exibindo conteúdos
primitivos ditos como ilógico, instintivo e irracional.
Equilibrado sobre o carro, atrás, vem Agenor Soronho,
carreiro descrito como maligno e odioso. A carga que levam consiste num esquife
rude, depositado sobre rapaduras, abrigando o cadáver do pai de Tiãozinho, seu
Jenuário, falecido naquela manhã por doença de longa data.
Durante o trajeto, é dado a conhecer que Agenor Soronho é
amante da mãe de Tiãozinho, fato que provoca intenso ódio neste último.
Embatido entre a penosa obrigação de assistir ao pai doente, “cego e entrevado,
já de anos, no jirau” e o desespero psíquico de presenciar a relação adúltera
do carreiro com sua mãe, Tiãozinho acaba por despertar em si um insuspeitado
sentimento de ira contra Soronho, uma mistura de ódio e ressentimento, expresso
por um forte desejo de vingança. Simultaneamente, uma intensa repugnância pelo
comportamento materno ganha importância:
... E que impunha, até, ter raiva da mãe...
[...]Ah, da mãe não gostava!... Era nova
e bonita, mas antes não fosse... Mãe da gente devia de ser velha,
rezando e sendo séria, de outro jeito...Que não tivesse mexida com outro homem
nenhum...
Como é que ele ia poder gostar direito da
mãe?... Ela deixava até que o Agenor carreiro mandasse nele, xingasse, tomasse
conta, batesse... Mandava que ele obedecesse ao Soronho, porque o homem era
quem estava sustentando a família toda. Mas o carreiro não gostava de
Tiãozinho... E era melhor mesmo, porque ele também tinha ojeriza daquele
capeta!... Ruço!... Entrão!... Malvado!... O demônio devia de ser assim, sem
tirar e nem pôr... (ROSA, 1946, p.220).
A trajetória para enterrar o corpo do defunto é
percorrida lenta e penosamente pelo menino guia. Somado à aflição pelo
sofrimento do pai, a revolta com o adultério da mãe e o ultraje pelos maus
tratos do carreiro, Tiãozinho carrega a culpa edipiana junto ao luto paterno:
Arre! que nunca foi tão penosa uma ida ao
arraial. Também, com tudo tão triste, carreando o pai para a cova, coitado do
pai... (ROSA, 1946, p.223).
Sob a ótica psicanalista, a morte de um
genitor é uma das experiências mais impactantes que a criança pode vivenciar.
Com os pais, morre também a ilusão narcísica da onipotência infantil em um
momento em que ela é necessária como fonte de segurança. Diante da ausência
irreversível de um vínculo provedor de sustentação, a criança se depara com
profundos sentimentos de desamparo e impotência.
Tendo em conta os casos estudados e a
literatura a respeito (Bowlby, 1993; Winnicott, 1997; Worden, 1996), podemos
levantar a hipótese de que a fantasia de ter sido responsável pela morte do
genitor deve ser encontrada, em maior ou menor intensidade, em todas as
crianças que perdem um genitor.
Segundo Klein (1970), se a ambivalência
afetiva para com o objeto amado e perdido é muito intensa, tal objeto fica
muito persecutório e é abalado o objeto interno protetor que confere segurança.
A morte do objeto rival, no momento de elaboração edípica, intensifica as
fantasias de culpa, de caráter persecutório, em relação aos desejos edípicos, o
que dificulta a elaboração do Édipo e do luto. Quando a criança vive a situação
edípica, a presença concreta do progenitor que é sentido como rival permite a
constatação de que ainda que ela sinta raiva dele, não o destruiu; o objeto é
suficientemente bom porque é capaz de suportar seus sentimentos de raiva, o que
ameniza sua angústia e culpa. No entanto, quando o genitor objeto de rivalidade
falece, a criança sente que seus desejos são muito poderosos e que seus sentimentos
de raiva são muito destrutivos.
Desse modo, o sentimento de culpa no menino guia deu
espaço ao desejo de assassinar o amante da mãe:
Mas Tiãozinho
espera... Há-de chegar o dia!... Quando crescer, quando ficar homem, vai
ensinar ao seu Agenor Soronho... Ah, isso vai!... Há-de tirar desforra boa, que
Deus é grande! (ROSA, 1946, p.225).
A essa altura, Tiãozinho fora tomado por emoções
negativas:
Enlameado até à
cintura, Tiãozinho cresce de ódio. Se pudesse matar o carreiro... Deixa eu
crescer!... Deixa eu ficar grande!... Hei de dar conta deste danisco... (ROSA, 1946, p.226).
Adiante, a paisagem muda, surgem outros carros e os bois
conversam entre si. Neste momento da narrativa, o menino caminha meio
adormecido, meio vigilante. Tal estado de semi-inconsciência permite a
Tiãozinho aniquilar momentaneamente a porção racional de sua psique e entrar em
contato direto com o mundo dos instintos. O menino entra num estado de transe
que o leva a passear entre a razão e a instintividade, a realidade e o desejo,
a luz e a escuridão:
Mesmo meio no sono está Tiãozinho. Mais de meio: tão só uma pequena
porção dele vigie, talvez, O resto flutua em lugares estranhos. Em outra
parte... E a pequenina porção alerta em Tiãozinho está alegre, muito alegre e
leve... Não sente mais raiva.., O dia desesquentou, refrescou, mesmo. (ROSA, 1946, p.233).
O estado de dissociação de consciência que se
assemelha a um sonho acordado, denominado transe, caracteriza-se singularmente
no trecho supracitado. Ao longo da narrativa, palavras como “dia” e “noite”,
“escuro” e “clareza”, “dormindo” e “acordado” surgem como expressões
metafóricas que representam os conflitos psíquicos vividos pelo menino guia. Faz-se uma aproximação da percepção do garoto – visto pelos bois como
homem bezerro – com a do animal:
— O bezerro-de-homem sabe mais,
às vezes... Ele vive muito perto de nós, e ainda bezerro... Tem horas em que
ele fica ainda mais perto de nós... Quando está meio dormindo, pensa quase como
nós bois... Ele está lá adiante, e de repente vem até aqui... Se encosta em
nós, no escuro... No mato-escuro-de-todos-os- bois... Tenho medo de que ele
entenda a nossa conversa...
— E como o dia e a noite... A
noite enorme. (ROSA, 1946, p.232).
Nota-se em Tiãozinho uma perda das fronteiras entre o eu e o mundo
externo, definida psicopatologicamente como estado de êxtase. A narrativa culmina numa inaudita mistura de forças, num transe
fragmentário onde se mesclam as falas de todos os bois e a do menino guia. A
experiência extática, ao tornar possível o transbordamento completo das zonas
do inconsciente, converte o persistente mutismo de Tiãozinho num avassalador e
irrepreensível acionamento das potencialidades antes reprimidas. O menino
deseja a morte do carreiro e, em seus devaneios, sente-se enorme e poderoso, o
mesmo acontecendo com os bois.
O
indefeso Tiãozinho transmuta-se agora num monstro de vontade, que arremessa
contra o carreiro toda a sua potência acumulada ao longo da travessia:
Sou Tião... Tiãozinho!... Matei seu Agenor Soronho...
Torno a matar!... Está morto esse carreiro do diabo!... Morto matado...
Picado... Não pode entrar na nossa cafua. Não deixo!... Sou Tiãozinho... Se ele
quiser embocar, mato outra vez... Mil vezes!... (...) Quem manda agora na cafua
sou eu... Eu, Tiãozinho!... Sou grande, sou dono de muitas terras, com muitos
carros de bois, com muitas juntas... Ninguém pode mais nem falar no nome do seu
Soronho... Não deixo!... Sou o mais forte de todos... Ninguém pode mandar em
mim!... Tiãozão... Tiãozão!.. ROSA, 1946, p.234).
O
desejo transforma-se em ato: ao fim do transe, com um repentino solavanco,
planejado pelos oito bois, Soronho, que tranqüilamente dormia sobre a borda do
carro, desequilibra-se e é parcialmente decapitado por uma das rodas do
veículo.
Tiãozinho acorda do “meio sono” assustado:
Arrepelando-se todo. Chorando. Como um doido.
Tiãozinho. — “Meu Deus! Como é que foi
isto?!... Minha Nossa Senhora! .. .“
— Sentado na beira dum
buraco. Com os pés dentro do buraco. — “Eu tive a culpa... Mas eu estava meio
cochilando... Sonhei... Sonhei e gritei... Nem sei o que foi que me assustou... ROSA, 1946, p.235).
E agora, desprovido da carga da culpa
edipiana, carrega o corpo do pai junto ao corpo do amante da mãe; porém
sente-se mais leve, seguindo ligeiro e alegremente o seu itinerário.
Tiãozinho nunca
houve melhor menino candieiro — vai em corridinha, maneiro, porque os bois, com
a fresca, aceleram. E talvez dois defuntos dêem mais para a viagem, pois até o
carro está contente — renhein... nhein... e abre a goela do chumaço, numa toada
triunfal.( ROSA, 1946, p.236).
REFERÊNCIAS:
1. ROSA,
João Guimarães. Sagarana. In: Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1995.