terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Psicanálise em “Conversa de Bois” (SAGARANA), de Guimarães Rosa

      “O homem é um animal racional que perde sempre a cabeça quando é chamado a agir pelos ditames da razão.” Oscar Wilde               Resultado de imagem para conversa de bois sagarana
A travessia de um carro de bois através de uma estrada sertaneja confecciona o cenário do conto “Conversa de Bois”, oitava narrativa de "Sagarana", publicada por Guimarãoes Rosa em 1946.  O carro, puxado por oito bois, é conduzido por Tiãozinho, o menino guia que, muito triste, vai à frente da boiada.

Só Tiãozinho era quem ia triste. Puxando a vanguarda, fungando o fio duplo que lhe escorria das narinas, e dando a direção e tenteando os bois. (ROSA, 1946, p.214).

Os oito animais são dotados de uma inteligência estranha ao ser humano e tecem com ela uma visão do existir que se opõe ao pensamento dos homens. Este, em todo seu pragmatismo, em toda sua ânsia de saber, de pôr a nu o essencial das coisas, não se coaduna, de modo algum, à sabedoria instintiva dos bichos.

                        — Podemos pensar como o homem e como os bois. Mas é melhor não pensar como o homem...

                        — Pior, pior... Começamos a olhar o medo.., o medo grande.., e a pressa... O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho... E ruim ser boi-de-carro. E ruim viver perto dos homens... As coisas ruins são do homem: tristeza, fome, calor— tudo, pensado, é pior... (ROSA, 1946, p.217).

Aqui se delineia um conflito que alude a conteúdos intrapsíquicos: De um lado, a consciência, representada pelo lógico, o socrático, o científico; de outro, o inconsciente, exibindo conteúdos primitivos ditos como ilógico, instintivo e irracional.
Equilibrado sobre o carro, atrás, vem Agenor Soronho, carreiro descrito como maligno e odioso. A carga que levam consiste num esquife rude, depositado sobre rapaduras, abrigando o cadáver do pai de Tiãozinho, seu Jenuário, falecido naquela manhã por doença de longa data.
Durante o trajeto, é dado a conhecer que Agenor Soronho é amante da mãe de Tiãozinho, fato que provoca intenso ódio neste último. Embatido entre a penosa obrigação de assistir ao pai doente, “cego e entrevado, já de anos, no jirau” e o desespero psíquico de presenciar a relação adúltera do carreiro com sua mãe, Tiãozinho acaba por despertar em si um insuspeitado sentimento de ira contra Soronho, uma mistura de ódio e ressentimento, expresso por um forte desejo de vingança. Simultaneamente, uma intensa repugnância pelo comportamento materno ganha importância:

            ... E que impunha, até, ter raiva da mãe... [...]Ah, da mãe não gostava!... Era nova         e bonita, mas antes não fosse... Mãe da gente devia de ser velha, rezando e sendo séria, de outro jeito...Que não tivesse mexida com outro homem nenhum...

            Como é que ele ia poder gostar direito da mãe?... Ela deixava até que o Agenor carreiro mandasse nele, xingasse, tomasse conta, batesse... Mandava que ele obedecesse ao Soronho, porque o homem era quem estava sustentando a família toda. Mas o carreiro não gostava de Tiãozinho... E era melhor mesmo, porque ele também tinha ojeriza daquele capeta!... Ruço!... Entrão!... Malvado!... O demônio devia de ser assim, sem tirar e nem pôr... (ROSA, 1946, p.220).

A trajetória para enterrar o corpo do defunto é percorrida lenta e penosamente pelo menino guia. Somado à aflição pelo sofrimento do pai, a revolta com o adultério da mãe e o ultraje pelos maus tratos do carreiro, Tiãozinho carrega a culpa edipiana junto ao luto paterno:

                          Arre! que nunca foi tão penosa uma ida ao arraial. Também, com tudo tão triste, carreando o pai para a cova, coitado do pai... (ROSA, 1946, p.223).


Sob a ótica psicanalista, a morte de um genitor é uma das experiências mais impactantes que a criança pode vivenciar. Com os pais, morre também a ilusão narcísica da onipotência infantil em um momento em que ela é necessária como fonte de segurança. Diante da ausência irreversível de um vínculo provedor de sustentação, a criança se depara com profundos sentimentos de desamparo e impotência.
Tendo em conta os casos estudados e a literatura a respeito (Bowlby, 1993; Winnicott, 1997; Worden, 1996), podemos levantar a hipótese de que a fantasia de ter sido responsável pela morte do genitor deve ser encontrada, em maior ou menor intensidade, em todas as crianças que perdem um genitor.
 Segundo Klein (1970), se a ambivalência afetiva para com o objeto amado e perdido é muito intensa, tal objeto fica muito persecutório e é abalado o objeto interno protetor que confere segurança. A morte do objeto rival, no momento de elaboração edípica, intensifica as fantasias de culpa, de caráter persecutório, em relação aos desejos edípicos, o que dificulta a elaboração do Édipo e do luto. Quando a criança vive a situação edípica, a presença concreta do progenitor que é sentido como rival permite a constatação de que ainda que ela sinta raiva dele, não o destruiu; o objeto é suficientemente bom porque é capaz de suportar seus sentimentos de raiva, o que ameniza sua angústia e culpa. No entanto, quando o genitor objeto de rivalidade falece, a criança sente que seus desejos são muito poderosos e que seus sentimentos de raiva são muito destrutivos.
Desse modo, o sentimento de culpa no menino guia deu espaço ao desejo de assassinar o amante da mãe:

Mas Tiãozinho espera... Há-de chegar o dia!... Quando crescer, quando ficar homem, vai ensinar ao seu Agenor Soronho... Ah, isso vai!... Há-de tirar desforra boa, que Deus é grande! (ROSA, 1946, p.225).


A essa altura, Tiãozinho fora tomado por emoções negativas:

Enlameado até à cintura, Tiãozinho cresce de ódio. Se pudesse matar o carreiro... Deixa eu crescer!... Deixa eu ficar grande!... Hei de dar conta deste danisco... (ROSA, 1946, p.226).


Adiante, a paisagem muda, surgem outros carros e os bois conversam entre si. Neste momento da narrativa, o menino caminha meio adormecido, meio vigilante. Tal estado de semi-inconsciência permite a Tiãozinho aniquilar momentaneamente a porção racional de sua psique e entrar em contato direto com o mundo dos instintos. O menino entra num estado de transe que o leva a passear entre a razão e a instintividade, a realidade e o desejo, a luz e a escuridão:

                        Mesmo meio no sono está Tiãozinho. Mais de meio: tão só uma pequena porção dele vigie, talvez, O resto flutua em lugares estranhos. Em outra parte... E a pequenina porção alerta em Tiãozinho está alegre, muito alegre e leve... Não sente mais raiva.., O dia desesquentou, refrescou, mesmo. (ROSA, 1946, p.233).

O estado de dissociação de consciência que se assemelha a um sonho acordado, denominado transe, caracteriza-se singularmente no trecho supracitado. Ao longo da narrativa, palavras como “dia” e “noite”, “escuro” e “clareza”, “dormindo” e “acordado” surgem como expressões metafóricas que representam os conflitos psíquicos vividos pelo menino guia. Faz-se uma aproximação da percepção do garoto – visto pelos bois como homem bezerro – com a do animal:

             — O bezerro-de-homem sabe mais, às vezes... Ele vive muito perto de nós, e ainda bezerro... Tem horas em que ele fica ainda mais perto de nós... Quando está meio dormindo, pensa quase como nós bois... Ele está lá adiante, e de repente vem até aqui... Se encosta em nós, no escuro... No mato-escuro-de-todos-os- bois... Tenho medo de que ele entenda a nossa conversa...

              — E como o dia e a noite... A noite enorme. (ROSA, 1946, p.232).


Nota-se em Tiãozinho uma perda das fronteiras entre o eu e o mundo externo, definida psicopatologicamente como estado de êxtase. A narrativa culmina numa inaudita mistura de forças, num transe fragmentário onde se mesclam as falas de todos os bois e a do menino guia. A experiência extática, ao tornar possível o transbordamento completo das zonas do inconsciente, converte o persistente mutismo de Tiãozinho num avassalador e irrepreensível acionamento das potencialidades antes reprimidas. O menino deseja a morte do carreiro e, em seus devaneios, sente-se enorme e poderoso, o mesmo acontecendo com os bois.
O indefeso Tiãozinho transmuta-se agora num monstro de vontade, que arremessa contra o carreiro toda a sua potência acumulada ao longo da travessia:

                          Sou Tião... Tiãozinho!... Matei seu Agenor Soronho... Torno a matar!... Está morto esse carreiro do diabo!... Morto matado... Picado... Não pode entrar na nossa cafua. Não deixo!... Sou Tiãozinho... Se ele quiser embocar, mato outra vez... Mil vezes!... (...) Quem manda agora na cafua sou eu... Eu, Tiãozinho!... Sou grande, sou dono de muitas terras, com muitos carros de bois, com muitas juntas... Ninguém pode mais nem falar no nome do seu Soronho... Não deixo!... Sou o mais forte de todos... Ninguém pode mandar em mim!... Tiãozão... Tiãozão!.. ROSA, 1946, p.234).

O desejo transforma-se em ato: ao fim do transe, com um repentino solavanco, planejado pelos oito bois, Soronho, que tranqüilamente dormia sobre a borda do carro, desequilibra-se e é parcialmente decapitado por uma das rodas do veículo.
                                            
Tiãozinho acorda do “meio sono” assustado:

                           Arrepelando-se todo. Chorando. Como um doido. Tiãozinho. — “Meu   Deus! Como é que foi isto?!... Minha Nossa Senhora! .. .“

                        — Sentado na beira dum buraco. Com os pés dentro do buraco. — “Eu tive a culpa... Mas eu estava meio cochilando... Sonhei... Sonhei e gritei... Nem sei o que foi que me assustou... ROSA, 1946, p.235).


E agora, desprovido da carga da culpa edipiana, carrega o corpo do pai junto ao corpo do amante da mãe; porém sente-se mais leve, seguindo ligeiro e alegremente o seu itinerário.
                    
Tiãozinho nunca houve melhor menino candieiro — vai em corridinha, maneiro, porque os bois, com a fresca, aceleram. E talvez dois defuntos dêem mais para a viagem, pois até o carro está contente — renhein... nhein... e abre a goela do chumaço, numa toada triunfal.( ROSA, 1946, p.236).

 REFERÊNCIAS: 
1.    ROSA, João Guimarães. Sagarana. In: Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Teoria Estrutural da Mente em “O Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”

O escritor escocês Robert L. B. Stevenson compôs uma fascinante obra de perene valor literário: The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1886), publicada no Brasil também sob o título O Médico e o Monstro é uma história que discorre sobre o conceito da dualidade existente na espécie humana.


Dr. Jekyll é um médico respeitado, altruísta e adepto aos costumes morais, que vez por outra, usando uma poção, se precipita num individuo hedonista chamado Hyde, sob cuja personalidade comete uma série de crimes.
Foi no lado moral e em minha própria pessoa que aprendi a reconhecer a completa e primitiva dualidade do homem; vi que, das duas naturezas que lutavam no campo de batalha da minha consciência, mesmo que pudesse dizer sem erro que eu era uma ou outra, eu era radicalmente ambas.
Jekyll criara a tal poção ao se dar conta da ambiguidade que habitava em sua mente: por um lado, a necessidade da satisfação dos prazeres, por outro, o comedimento das obrigações morais e sociais.
De fato, o pior dos meus defeitos era uma certa disposição impaciente para o divertimento, como a que fizera a felicidade de muitos, mas com a qual achei difícil conciliar meu imperioso desejo de manter a cabeça erguida e ter uma postura mais séria que a média. Em consequência disso, passei a ocultar meus prazeres, e quando, após anos de reflexão, comecei a olhar o redor e avaliar o progresso da minha posição no mundo, já estava seriamente comprometido com uma vida dupla.
A dificuldade em lidar com as partes suscitou o desejo de separá-las “Se cada um, pensei, pudesse ao menos ser abrigado em identidades distintas, a vida seria aliviada de tudo o que era insuportável.“

Durante algum tempo, é capaz de retornar a personalidade original de Jekyll – usando do composto para ir e voltar -, porém gradualmente a melhor parte de sua natureza se enfraquece, ate que, por fim, seu lado primitivo toma-lhe a existência. “Desse modo, todas as coisas pareciam indicar que eu ia perdendo o controle do meu eu original e melhor, e me incorporando aos poucos no meu segundo e pior eu.”.

O livro pode ser visto como uma notável fonte de estudo para a psicologia humana, visto que antecipa a estrutura do aparelho psíquico cinquenta anos antes de Freud publicar suas teorias estruturais da personalidade, além de simbolizar perfeitamente o indivíduo acometido pelo Transtorno Dissociativo de Identidade, processo mental caracterizado pela desintegração do Eu, popularmente conhecido como Dupla Personalidade.

Cabe aqui uma explicação sobre a estrutura mental proposta por Freud. Em 1923, no livro "O Ego e o Id", Freud expôs uma divisão da mente humana em três partes: 1) o ego que se identifica à nossa consciência; 2) o superego, que seria a nossa consciência moral, ou seja, os princípios sociais e as proibições que nos são inculcadas nos primeiros anos de vida e que nos acompanham de forma inconsciente a vida inteira; 3) o id, isto é, os impulsos múltiplos da libido, dirigidos sempre para o prazer.

Na teoria de Freud, reconhece-se no ser humano uma organização psíquica intercalada entre seus estímulos sensoriais e a percepção de suas necessidades corporais, por um lado, e suas ações motoras, por outro lado, e que meia entre eles com intenção determinada. Chamamos essa organização de Eu. Além do Eu reconhece-se outro âmbito psíquico, mais amplo, mais grandioso e mais obscuro que o Eu, denominado Id.
Para tornar compreensível a relação entre Eu e Id, peço-lhe que imagine o Eu como uma fachada do Id, um frontispício, como uma camada cortical externa dele, por assim dizer. Sabemos que as camadas corticais devem suas características especiais à influencia modificadora do meio externo com que se acham em contato. Então imaginamos que o Eu seja uma camada do aparelho psíquico, do Id, modificada por influência do mundo exterior, a realidade. [...] O Eu se acha entre a realidade e o Id, o que é propriamente psíquico. (FREUD, 1918). 
As forças que impelem o aparelho psíquico a atividade são geradas nos órgãos do corpo, como expressão das grandes necessidades físicas. Chamamos tais necessidades físicas, na medida em que são estímulos a atividade psíquica, de instintos. Esses instintos preenchem o Id; pode-se dizer, resumidamente, que toda a energia que há no Id vem deles. E o que querem os instintos? Satisfação. Tais situações de satisfação podem ser produzidas apenas com o auxilio do mundo exterior. Com isso entra em ação a parte do Id voltada para o mundo exterior, o Eu.
Se toda força impulsora que põe o veículo em movimento é fornecida pelo Id, então o Eu assume, por assim dizer, o volante, sem o qual não se atinge nenhuma meta, naturalmente. (FREUD, 1918).
Os instintos do Id pressionam por satisfação imediata, mas desse modo nada alcançam, ou até mesmo sofrem danos palpáveis. É tarefa do Eu, então, mediar entre as exigências do Id e as objeções do mundo exterior. Assim, ao frear as paixões e domar os impulsos do Id, substitui o principio do prazer, que antes era o único a decidir, pelo denominado principio da realidade, que leva em conta as condições estabelecidas pelo mundo real externo. Também no próprio Eu diferencia-se uma instância particular, o Super-eu, esse Super-eu tem uma posição especial entre o Eu e o Id. Pertence ao Eu, partilha a elevada organização psíquica deste, mas se acha em relação intima com o Id. Esse Super-eu pode contrapor-se ao eu e frequentemente o trata de maneira bastante dura. É ele o portador do fenômeno psíquico que chamamos de “consciência moral”.

A obra de Stevenson tem caráter profético. Anos depois, seria desvendada a face oculta da mente, o Sr. Hyde (o sobrenome é óbvio: hide significa “esconder”) que se esconde atrás de cada Dr. Jekyll. Os personagens do romance possuem manifestações características da teoria estrutural da mente proposta por Freud. Hyde é facilmente reconhecível como o Id, que busca a gratificação imediata, com um instinto agressivo, e destituído dos costumes morais e sociais que precisam ser seguidos. Seu prazer provém da violência e o instinto de morte acaba por conduzi-lo a sua própria destruição. Dr. Jekyll representa, então, o Eu, sendo consciente, racional, dominado por princípios sociais e guiado pelo Super-eu.

Jekyll inicia seu relato sugerindo ação de seu Super-eu reprimindo os instintos do Id:
 Muitos homens teriam até se vangloriado de tais deslizes, ao passo que eu, de minha parte, me sentia culpado; e considerando os elevados padrões que estabelecera pra mim mesmo, eu os julgava e escondia como uma vergonha quase mórbida.
Hyde, um sujeito despido da influencia do Eu e do Super-eu, assim se descreve:
Dentro de mim, eu estava consciente de uma estonteante inconsequência, um fluxo de imagens sensuais e desordenadas correndo feito uma enxurrada na minha imaginação, uma dissolução das amarras das obrigações, uma desconhecida, mas não inocente liberdade de alma.
Isso tudo passou, deixando-me meio tonto; e depois, quando essa vertigem se foi , comecei a ter consciência de uma mudança no caráter de meus pensamentos, um atrevimento maior, um desprezo pelos perigos, uma dissolução das amarras da responsabilidade. 
 As referencias a existência do inconsciente não param por aí. Antes do relato do Dr. Jekyll, ao notar a estranheza do cliente, o advogado Utterson faz referencia a possiblidade do sofrimento do Dr. Jekyll ser conseguinte a demandas reprimidas: "Ah, deve ser isto, o fantasma de algum pecado antigo, o câncer de alguma desgraça oculta; a punição se aproxima, claudicante, anos depois de a memória já haver esquecido e o amor próprio ter perdoado a falta."

A escolha de um médico como o personagem que se transformará num monstro assassino estabelece um paradoxo entre o crime que destrói uma vida e uma profissão que teoricamente se caracteriza pela luta contra a morte e a compaixão pelo ser humano, realçando o conceito de dualidade humana.

A obra obteve tão grande sucesso que até os dias atuais o termo "Jekyll e Hyde" é utilizado pela sociedade científica como sinônimo de desordem de personalidade múltipla.

REFERÊNCIAS: 
1.FREUD, Obras Completas Vol. 17, in: "A Questão da Análise Leiga". Companhia das Letras. 2014 2.Shubh M. Singh; Subho Chakrabarti. “A study in dualism: The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”. Indian J Psychiatry. 2008 Jul–Sep; 50(3): 221–223. 3.SCLIAR, Moacyr, "A Paixão Transformada", Companhia das letras, São Paulo, 1996 4.Stevenson, R. L. "O médico e o monstro". Coleção L&PM Pocket, 2002.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Psiquê & Literatura

Toda obra literária genuína reproduz uma experiência humana e ensina algo acerca do eu e do outro.


A literatura exerce funções humanísticas desde a antiguidade. Aristóteles enaltecia as atividades desta arte, que para ele centrava-se especialmente no grau catártico, tornando o leitor mais sensível, humano e cordial. A função catártica ou catarse, apontada por Aristóteles, é aquela que faz com que o leitor purifique os seus sentimentos ao se defrontar com uma obra literária.

São indiscutíveis as relações existentes entre a arte literária e a psicopatologia, no sentido de que o sofrimento e as manifestações incomuns do espírito tem dado origem a grandes criações na tragédia e no romance.  A psicologia não raramente utiliza como fontes de estudo Hamlet ou Dom Quixote. Com Freud (1924), a tragédia de Sófocles foi analisada com pleno êxito. Há assim uma possibilidade de colher, nas grandes obras artísticas, subsídios à compreensão do adoecer psíquico.

É sabido que o ser humano aprende mais facilmente através de algo que desperte paixão, e as artes tem esse poder. Ouve-se uma música bonita e, sem esforços, ela invade o intelecto e ecoa mentalmente durante anos, vê-se uma imagem impressionante e recorda-se dela anos depois com a mesma intensidade. Tal magia se estende às artes literárias.

Nas tragédias de Shakespeare há um saber sobre o sofrimento psíquico e suas consequências que nas monografias feitas com questionários, testes e corretas correlações estatísticas não é cortejado. Jean Valjean (Victor Hugo) e Raskolnikov (Dostoievski), personalidades intrigantes comoventes e envolventes, – não redutíveis a simples casos típicos de tratados –, nos ajudam mais na compreensão do outro que a leitura de criteriosas observações de analistas. Acresce-se a isso o poder passional da arte de penetrar a memória e ali fixar-se, condensando ainda melhor o conhecimento adquirido.

Supõe-se que uma bagagem cultural refinada funcione como uma lente, polindo a visão humanística e, por conseguinte, facilitando a compreensão do ser humano. A expressão literária, – palco de vivências emocionais que despertam a empatia do leitor –, traz a chave para desvendar o homem em relação ao que pensa, sente e ao caminho que pretende seguir.

“Personagens no Divã” objetiva mostrar os caminhos percorridos por cada personagem em encontro a sua própria razão de existir.