segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Teoria Estrutural da Mente em “O Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”

O escritor escocês Robert L. B. Stevenson compôs uma fascinante obra de perene valor literário: The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1886), publicada no Brasil também sob o título O Médico e o Monstro é uma história que discorre sobre o conceito da dualidade existente na espécie humana.


Dr. Jekyll é um médico respeitado, altruísta e adepto aos costumes morais, que vez por outra, usando uma poção, se precipita num individuo hedonista chamado Hyde, sob cuja personalidade comete uma série de crimes.
Foi no lado moral e em minha própria pessoa que aprendi a reconhecer a completa e primitiva dualidade do homem; vi que, das duas naturezas que lutavam no campo de batalha da minha consciência, mesmo que pudesse dizer sem erro que eu era uma ou outra, eu era radicalmente ambas.
Jekyll criara a tal poção ao se dar conta da ambiguidade que habitava em sua mente: por um lado, a necessidade da satisfação dos prazeres, por outro, o comedimento das obrigações morais e sociais.
De fato, o pior dos meus defeitos era uma certa disposição impaciente para o divertimento, como a que fizera a felicidade de muitos, mas com a qual achei difícil conciliar meu imperioso desejo de manter a cabeça erguida e ter uma postura mais séria que a média. Em consequência disso, passei a ocultar meus prazeres, e quando, após anos de reflexão, comecei a olhar o redor e avaliar o progresso da minha posição no mundo, já estava seriamente comprometido com uma vida dupla.
A dificuldade em lidar com as partes suscitou o desejo de separá-las “Se cada um, pensei, pudesse ao menos ser abrigado em identidades distintas, a vida seria aliviada de tudo o que era insuportável.“

Durante algum tempo, é capaz de retornar a personalidade original de Jekyll – usando do composto para ir e voltar -, porém gradualmente a melhor parte de sua natureza se enfraquece, ate que, por fim, seu lado primitivo toma-lhe a existência. “Desse modo, todas as coisas pareciam indicar que eu ia perdendo o controle do meu eu original e melhor, e me incorporando aos poucos no meu segundo e pior eu.”.

O livro pode ser visto como uma notável fonte de estudo para a psicologia humana, visto que antecipa a estrutura do aparelho psíquico cinquenta anos antes de Freud publicar suas teorias estruturais da personalidade, além de simbolizar perfeitamente o indivíduo acometido pelo Transtorno Dissociativo de Identidade, processo mental caracterizado pela desintegração do Eu, popularmente conhecido como Dupla Personalidade.

Cabe aqui uma explicação sobre a estrutura mental proposta por Freud. Em 1923, no livro "O Ego e o Id", Freud expôs uma divisão da mente humana em três partes: 1) o ego que se identifica à nossa consciência; 2) o superego, que seria a nossa consciência moral, ou seja, os princípios sociais e as proibições que nos são inculcadas nos primeiros anos de vida e que nos acompanham de forma inconsciente a vida inteira; 3) o id, isto é, os impulsos múltiplos da libido, dirigidos sempre para o prazer.

Na teoria de Freud, reconhece-se no ser humano uma organização psíquica intercalada entre seus estímulos sensoriais e a percepção de suas necessidades corporais, por um lado, e suas ações motoras, por outro lado, e que meia entre eles com intenção determinada. Chamamos essa organização de Eu. Além do Eu reconhece-se outro âmbito psíquico, mais amplo, mais grandioso e mais obscuro que o Eu, denominado Id.
Para tornar compreensível a relação entre Eu e Id, peço-lhe que imagine o Eu como uma fachada do Id, um frontispício, como uma camada cortical externa dele, por assim dizer. Sabemos que as camadas corticais devem suas características especiais à influencia modificadora do meio externo com que se acham em contato. Então imaginamos que o Eu seja uma camada do aparelho psíquico, do Id, modificada por influência do mundo exterior, a realidade. [...] O Eu se acha entre a realidade e o Id, o que é propriamente psíquico. (FREUD, 1918). 
As forças que impelem o aparelho psíquico a atividade são geradas nos órgãos do corpo, como expressão das grandes necessidades físicas. Chamamos tais necessidades físicas, na medida em que são estímulos a atividade psíquica, de instintos. Esses instintos preenchem o Id; pode-se dizer, resumidamente, que toda a energia que há no Id vem deles. E o que querem os instintos? Satisfação. Tais situações de satisfação podem ser produzidas apenas com o auxilio do mundo exterior. Com isso entra em ação a parte do Id voltada para o mundo exterior, o Eu.
Se toda força impulsora que põe o veículo em movimento é fornecida pelo Id, então o Eu assume, por assim dizer, o volante, sem o qual não se atinge nenhuma meta, naturalmente. (FREUD, 1918).
Os instintos do Id pressionam por satisfação imediata, mas desse modo nada alcançam, ou até mesmo sofrem danos palpáveis. É tarefa do Eu, então, mediar entre as exigências do Id e as objeções do mundo exterior. Assim, ao frear as paixões e domar os impulsos do Id, substitui o principio do prazer, que antes era o único a decidir, pelo denominado principio da realidade, que leva em conta as condições estabelecidas pelo mundo real externo. Também no próprio Eu diferencia-se uma instância particular, o Super-eu, esse Super-eu tem uma posição especial entre o Eu e o Id. Pertence ao Eu, partilha a elevada organização psíquica deste, mas se acha em relação intima com o Id. Esse Super-eu pode contrapor-se ao eu e frequentemente o trata de maneira bastante dura. É ele o portador do fenômeno psíquico que chamamos de “consciência moral”.

A obra de Stevenson tem caráter profético. Anos depois, seria desvendada a face oculta da mente, o Sr. Hyde (o sobrenome é óbvio: hide significa “esconder”) que se esconde atrás de cada Dr. Jekyll. Os personagens do romance possuem manifestações características da teoria estrutural da mente proposta por Freud. Hyde é facilmente reconhecível como o Id, que busca a gratificação imediata, com um instinto agressivo, e destituído dos costumes morais e sociais que precisam ser seguidos. Seu prazer provém da violência e o instinto de morte acaba por conduzi-lo a sua própria destruição. Dr. Jekyll representa, então, o Eu, sendo consciente, racional, dominado por princípios sociais e guiado pelo Super-eu.

Jekyll inicia seu relato sugerindo ação de seu Super-eu reprimindo os instintos do Id:
 Muitos homens teriam até se vangloriado de tais deslizes, ao passo que eu, de minha parte, me sentia culpado; e considerando os elevados padrões que estabelecera pra mim mesmo, eu os julgava e escondia como uma vergonha quase mórbida.
Hyde, um sujeito despido da influencia do Eu e do Super-eu, assim se descreve:
Dentro de mim, eu estava consciente de uma estonteante inconsequência, um fluxo de imagens sensuais e desordenadas correndo feito uma enxurrada na minha imaginação, uma dissolução das amarras das obrigações, uma desconhecida, mas não inocente liberdade de alma.
Isso tudo passou, deixando-me meio tonto; e depois, quando essa vertigem se foi , comecei a ter consciência de uma mudança no caráter de meus pensamentos, um atrevimento maior, um desprezo pelos perigos, uma dissolução das amarras da responsabilidade. 
 As referencias a existência do inconsciente não param por aí. Antes do relato do Dr. Jekyll, ao notar a estranheza do cliente, o advogado Utterson faz referencia a possiblidade do sofrimento do Dr. Jekyll ser conseguinte a demandas reprimidas: "Ah, deve ser isto, o fantasma de algum pecado antigo, o câncer de alguma desgraça oculta; a punição se aproxima, claudicante, anos depois de a memória já haver esquecido e o amor próprio ter perdoado a falta."

A escolha de um médico como o personagem que se transformará num monstro assassino estabelece um paradoxo entre o crime que destrói uma vida e uma profissão que teoricamente se caracteriza pela luta contra a morte e a compaixão pelo ser humano, realçando o conceito de dualidade humana.

A obra obteve tão grande sucesso que até os dias atuais o termo "Jekyll e Hyde" é utilizado pela sociedade científica como sinônimo de desordem de personalidade múltipla.

REFERÊNCIAS: 
1.FREUD, Obras Completas Vol. 17, in: "A Questão da Análise Leiga". Companhia das Letras. 2014 2.Shubh M. Singh; Subho Chakrabarti. “A study in dualism: The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”. Indian J Psychiatry. 2008 Jul–Sep; 50(3): 221–223. 3.SCLIAR, Moacyr, "A Paixão Transformada", Companhia das letras, São Paulo, 1996 4.Stevenson, R. L. "O médico e o monstro". Coleção L&PM Pocket, 2002.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Psiquê & Literatura

Toda obra literária genuína reproduz uma experiência humana e ensina algo acerca do eu e do outro.


A literatura exerce funções humanísticas desde a antiguidade. Aristóteles enaltecia as atividades desta arte, que para ele centrava-se especialmente no grau catártico, tornando o leitor mais sensível, humano e cordial. A função catártica ou catarse, apontada por Aristóteles, é aquela que faz com que o leitor purifique os seus sentimentos ao se defrontar com uma obra literária.

São indiscutíveis as relações existentes entre a arte literária e a psicopatologia, no sentido de que o sofrimento e as manifestações incomuns do espírito tem dado origem a grandes criações na tragédia e no romance.  A psicologia não raramente utiliza como fontes de estudo Hamlet ou Dom Quixote. Com Freud (1924), a tragédia de Sófocles foi analisada com pleno êxito. Há assim uma possibilidade de colher, nas grandes obras artísticas, subsídios à compreensão do adoecer psíquico.

É sabido que o ser humano aprende mais facilmente através de algo que desperte paixão, e as artes tem esse poder. Ouve-se uma música bonita e, sem esforços, ela invade o intelecto e ecoa mentalmente durante anos, vê-se uma imagem impressionante e recorda-se dela anos depois com a mesma intensidade. Tal magia se estende às artes literárias.

Nas tragédias de Shakespeare há um saber sobre o sofrimento psíquico e suas consequências que nas monografias feitas com questionários, testes e corretas correlações estatísticas não é cortejado. Jean Valjean (Victor Hugo) e Raskolnikov (Dostoievski), personalidades intrigantes comoventes e envolventes, – não redutíveis a simples casos típicos de tratados –, nos ajudam mais na compreensão do outro que a leitura de criteriosas observações de analistas. Acresce-se a isso o poder passional da arte de penetrar a memória e ali fixar-se, condensando ainda melhor o conhecimento adquirido.

Supõe-se que uma bagagem cultural refinada funcione como uma lente, polindo a visão humanística e, por conseguinte, facilitando a compreensão do ser humano. A expressão literária, – palco de vivências emocionais que despertam a empatia do leitor –, traz a chave para desvendar o homem em relação ao que pensa, sente e ao caminho que pretende seguir.

“Personagens no Divã” objetiva mostrar os caminhos percorridos por cada personagem em encontro a sua própria razão de existir.